Iguaçu-Corpus

A partir de Foz do Iguaçu a viagem passa a ser feita pelo Badia e o Nelson Franke, antigo amigo de Paraty. Em vias de aposentar-se, adotou a idéia da navegada - é quem faz o diário de bordo a seguir.


29.01.2004 – Tirei uns dias de folga para fazer minha primeira navegada fluvial. O Badia encontrou o Guidotti em Piracicaba e, com outros companheiros dele, foi para Iguaçu para limpar e preparar o “Paraty Mirim”. O Guidotti planeja levar seu barco para uma navegada de lá até sua Piracicaba, pois muitas vezes saiu de lá a navegar, mas nunca teve o prazer de chegar em sua cidade.

    




30.01.2004 – Cheguei a Iguaçu e foram dois dias de limpeza do barco. Parecia não acabar nunca. Com muitas interrupções para conversar com os sócios do clube que, final de semana, interessavam-se por aquele barco diferente e seus navegantes. O Badia cativava a todos contando da viagem e mostrando fotografias. Eu ainda não tinha muito a dizer, só minhas idéias da carência da cultura de lazer fluvial no país. E satisfazia-me ao ouvir a concordância enfática de todos.

03.02.2004 – Tiramos o dia para o ‘sonho de consumo’ em Ciudad del Este, no Paraguai. Engarrafamento permanente desde antes da ponte e até de gente, caminhando para o Paraguai. Fomos a pé. Aquela parte da cidade parece uma grande feira livre de importados. Comentei que precisavam do Rio-Cidade do prefeito César Maia e o Badia retrucou que talvez mais se adequasse o Favela-Bairro. As compras quase se resumiram a uma câmera digital que comprei, pois não havia nada de camping, só de caça e pesca. As compras têm que ser feitas em dinheiro, qualquer dos três dinheiros ‘locais’, pois a única alternativa é cartão, com até 15% de aumento. Então o jeito é a agência do Banco do Brasil, onde tudo rola fácil, até a tranqüilização sobre andar com dinheiro por lá. O calor que fazia me impressionou, talvez a terra vermelha da região é que faça passar a sensação de que a camada de ozônio já não existe por lá. O Sol arde na pele, pior que o verão no Rio de Janeiro.

As 3 fronteiras

04.02.2004 – De manhã o Florêncio, Diretor de Náutica do Iate Clube Lago de Itaipu, gentilmente levou-nos de carreta para o Iate Clube Cataratas, pois não há eclusa para descer a represa de Itaipu, só planos de construir uma. Chegando, fomos direto para a rampa íngreme e o “Paraty Mirim” novamente flutuou no Rio Paraná. São apenas 5 km até Puerto Iguazu, Argentina. Desce-se uns 4 km o Paraná, até o marco das Três Fronteiras, quando o Rio Uruguai desemboca no Paraná fazendo um T : Brasil de um lado do rio Uruguai, Argentina do outro, e o Paraguai do outro lado do Rio Paraná. Entramos no Rio Uruguai, já avistando a cidade. Quase nenhuma correnteza no mesmo rio que pouco acima apresenta as Cataratas enormes e lindas ! Atracamos e logo vem o oficial da ‘Prefectura Naval Argentina’, uma espécie de guarda costeira que controla e acompanha as navegações no país, como num plano de vôo. Mas nosso contato inicial não foi muito feliz : a partir de leve irregularidade na habilitação do Badia, mais um mal entendido de diferenças de classificações entre as marinhas dos dois países do que algo grave, tivemos que ficar em Puerto Iguazu por dois dias, com duas idas de ônibus ao Brasil, onde facilmente conseguíamos , na Capitania Fluvial do Paraná, cartas que tudo explicavam em nosso auxílio. Mas tudo era estranhamente lido sob olhar restritivo, dava a impressão de que havia uma ‘operação-padrão’ por lá. O Badia, com a responsabilidade de ser o dono e comandante do barco, tinha mais paciência com aquilo tudo. Eu já analisava o outro lado, inerente a todas as proteções. No terceiro dia nos deixaram partir. Minha compreensão de tudo ficou com o arrocho que o comandante, de férias em Santa Catarina, havia levado de uns policiais por lá, como contou.
O Paranazão por lá é um rio lindo, muito largo, só com natureza nas duas margens. A correnteza no meio nos ajudava bem. Foi ótima minha primeira impressão de navegar um rio : matar a sede simplesmente estendendo um copo para fora (abstraindo umas espuminhas que aparecem às vezes, devem ser dos vegetais das costas se decompondo), observando o mágico desfile verde nas margens, às vezes de binóculo para observar uns ‘ribeirinhos’ que pescavam ou lavavam roupa. E os ‘rebojos’, redemoinhos e convulsões estranhas na superfície, resultado do choque da água em correnteza com grandes pedras no fundo. Vimos alguns com depressão de uns dois palmos no centro. Interessante, desde que já havíamos classificado como folclore as histórias de barcos sugados pelos ‘rebojos’.
À tardinha chegamos a Puerto Libertad, percorridos 53 km de Puerto Iguazu. Recebeu-nos um simpático soldado da Prefectura, colocando logo à nossa disposição as instalações do posto. Mais tarde levou-nos para o Comando, a uns 3 km, onde o Comandante ofereceu-nos para o pernoite um quarto com todos os confortos. 

  

05.02.2004 – Antes de partirmos, observamos a linda vista que o posto oferecia do Paraná, a uns 30 metros acima do rio. E nos impressionamos com a narração do mesmo soldado simpático sobre o nível que as águas atingiram na enchente de 1991. Lá no alto fotografamos o alicerce suspenso de onde costumava ser o posto, que a água levou na enchente ! Outro fato interessante, de que já havia tido a impressão no lago de Itaipu, era que parecia que havia maré na água. Os movimentos de abrir e fechar comportas da gigantesca Itaipu alteram o nível do Paraná a toda a hora. Os argentinos das margens ficam culpando Itaipu pelos cuidados que tem que ter para não encontrar os barcos no seco na manhã seguinte.

  

  Ao zarparmos um soldado perguntou se não queríamos esperar um pouco para passar uma chata paraguaia que se aproximava subindo o rio. Acho que respondemos algo como ‘e daí ?’ e saímos. Logo avistamos a chata aproximando-se contra nós. O Badia analisou logo que devíamos cruzá-la à direita, no lado do Paraguai. Eu tomei um tempo preparando a câmera para fotografá-la. Não nos ocorreu uma situação que já havíamos lido no diário do “Remar até o Mar”. As chatas, a maioria paraguaia naquele trecho, são grandes rebocadores que puxam ou empurram diversas barcaças carregadas de cereais e grãos. São enormes ! E quando passam formam grandes ondas, só que, diferente das mesmas ondas no mar, elas batem nas margens e voltam. Em poucos minutos estávamos loucos escolhendo as maiores ondas, que vinham de dois lados cruzados, para aproar o barco para melhor enfrentá-las. Ufa ! Sobrevivemos ! Comecei logo a estabelecer rotinas para as próximas, para nunca mais passar por aquele sufoco : 1 - vestir os coletes imediatamente. 2 – buscar algum refúgio porventura existente nas margens. 3 – sem refúgio, checar logo o lado a ficar. O Badia havia notado que havia pedras no outro lado, eu não. Seria uma graça ficar manobrando no meio das pedras e ondas. 4 - enfrentar a situação adrenalinado, surpresinhas destas nunca mais.
Seguimos a viagem tranquilamente e entramos na foz de um arroio no lado paraguaio, que tinha umas lindas cataratas a uns cem metros adentro. Paramos para apreciar o visual cheio de vapores da queda e fotografar. Em 1991, quando o Guidotti fez sua navegada Piracicaba-Buenos Aires, conta em seu livro sobre margens bem diferentes das que vimos agora : o nível do rio devia ser bem mais baixo, pois conta de grandes barrancos na margens, com todos os rios, arroios e córregos caindo no Paraná em catarata. O Carlos e o Alessandro do ‘Remar’, em 1999 , já não mencionam os tais barrancos. 





À tarde chegamos a Puerto Eldorado, com direito a escolta de uma lancha da Prefectura. O local tem um grande cais de cimento de uns vinte metros de altura com uma prainha ao lado. Atracamos ao lado de uma grande lancha da Prefectura e subimos para almoçar num restaurante com visual do rio. Havia uma Alfândega porque havia uma travessia regular do Paraguai. Passamos a noite na cidade de Eldorado, em um Hotel. Uma comprida cidade, parece haver se desenvolvido apenas ao longo da estrada, por quase 15 km. Nos bares com mesas de plástico ao ar livre bebemos umas Quilmes, um litro de cerveja boa por menos de 3 reais ! O Badia observou que não parecia um país em crise. Verdade, o interior parece ter uma vida própria, mais independente das notícias de jornais que as capitais. Também notamos o paradoxo de não haver lixeiras e tudo ser muito limpo. É, nosso vizinho parece ser bem diferente do nosso gigante adormecido. 

Puerto Eldorado
 06.02.2004 – Que turismo agradável e diferente mergulharmos em ‘pueblos’ do interior, gastar algum dinheiro, comermos um inigualável churrasco argentino, mas logo voltarmos para nosso lúdico convívio principal com a Mãe Natureza na nossa especial ‘expedição’. Navegamos o dia inteiro tudo observando, pouco de “civilização”, às vezes uma instalação de carregar grãos em chatas, nos dois lados, às vezes umas fazendas no lado do Paraguai. Os ‘rebojos’ quase sempre na superfície do rio. Passávamos por regiões em que existem muitas prainhas de areias claras. Com o sol forte, as paradas para um banho de rio eram a glória. 





À tardinha, resolvemos passar a noite acampados na margem. Era noite de lua cheia. O Badia dormiu no barco e eu ao ar livre, ao lado da barraca armada. Era um silêncio muito mágico, um rio muito lindo, largo e iluminado, um céu muito estrelado para enfiar-me numa barraca. Acho que a energia dos rios não está distante da do mar, cansa mas nos provê boas noites de sono.





07.02.2004 – Acordamos cedo e nos defrontamos com a costa paraguaia iluminada pelo sol, a nossa nas sombras, toda a superfície de Sua Majestade o muy guapo y nobre Rio Paraná coberta de brumas de evaporação, uma visão de arrepiar. Fotografamos mas as fotos não conseguem mostrar o show daquela manhã.
Seguimos viagem, com a nítida sensação de que o passar das margens era um desfile que o nosso lindo planeta azul proporcionava só para nós, naquele momento. Que barato !
Passávamos pelos postos da Prefectura Naval sem parar, apenas um alô pelo rádio para eles marcarem nossa passagem. Nós dois falamos um portuñol legal, o Badia foi casado durante muitos anos com a Elisa, uruguaia de Colônia, chegou a viver lá, e eu acumulo muitos convívios de cozinhas da Europa, de refugiados a médicos cubanos na Guiné Bissau, de irmãos latino americanos soltos pelo mundo. Mas às vezes nenhum de nós entendia nada do que falavam alguns sobreviventes da matança generalizada dos índios, que ocorreu na Argentina e em tantos países. Numa ocasião o Badia jogou-me o rádio dizendo ‘fala aí com esse cara que eu não estou entendendo nada do que ele diz’. Peguei o rádio e falei com o cara. Sem entender nada do que ele falava.
Um corte de vida real, eu já estava atrasado na minha licença de uma semana no trabalho, resolvemos interromper este trecho da viagem antes do planejado, em algum porto bom que aparecesse. Aí aconteceu algo estranho : pela primeira vez fomos navegando e acompanhando a carta náutica, e a geografia não batia com o mapa. Curva para a esquerda, aparecia uma para a direita. Curva para a direita. Não chegava, só uma longa reta. Paramos para perguntar para algumas pessoas que apareciam na margens, mas as respostas também não batiam. Finalmente chegamos num ‘Puerto Mani’. Combinamos com o Mário, condutor da barca de travessia para o Paraguai, a guarda do “Paraty Mirim” por uns dois meses, até voltarmos. Do outro lado do rio havia um clube náutico paraguaio que parecia querer sacanear a Argentina com o volume do som que emitia de longe, e como em toda a região, principalmente músicas brasileiras das que menos apreciamos nós dois. Almoço e banho e parti de táxi para a Ruta 12, para pegar o primeiro ônibus rumo ao Rio de Janeiro. Peguei um local para Puerto Iguazu, que virava ônibus urbano a cada cidade de que se aproximava, longa viagem.




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