O
"Paraty Mirim", após o trecho de Foz do Iguaçu até
Puerto Mani / Corpus, ficou por dois meses na localidade de Puerto
Mani, Argentina, sob os cuidados do Sr. Mário, condutor da barca de
travessia para o Paraguai no local. O Diário aqui continua a
navegada até o destino final.
14.04.2004
- Quarta - POSADAS-AR - Cheguei ao Camping Municipal de Posadas, onde
o Badia me esperava para a continuação da navegada. Em fevereiro
havíamos deixado o "Paraty Mirim" em Puerto Mani e o Badia
o havia trazido a Posadas, a capital da Província de Misiones. Como
todas ao longo do rio, Posadas tem uma linda “costanera” à beira
do rio, esta novinha e construída pela binacional Yacireta como
compensação pelos prejuízos causados pelo lago da represa. No
ultimo domingo, dia 11, o Badia havia sido capa e mais uma página do
caderno Cotidiano do jornal "El Território", de Posadas.
O
Camping Municipal de Posadas está um tanto decadente, apesar de
situar-se em belo sitio à margem do rio. O Paraná, quando banhando
grandes cidades, é poluído como qualquer rio que conhecemos na
mesma situação. Mas lá tivemos contato com pessoas muito
solidárias e amigas : o Tito e a Yvonne, administradores, que nos
apoiaram no que puderam. Ele tem um barco de aço que originalmente
era uma baleeira de navio e onde foi fazendo modificações diversas
até tornar-se, hoje, uma curiosa mistura de barco do Popeye com o
Yellow Submarine. Compramos dele, por 100 pesos (= 100 reais), um
fogão chinês a querosene, parente dos lindos Coleman atuais.
Conhecemos também o Hector M. Wrublewski , dono do Club Nautico
Posadas, ao lado da Prefectura Naval. Misionero de origem de
prussianos e russos, Hector já viveu vidas diferentes como 12 anos
na marinha mercante, já morou no Brasil e planeja uma viagem em seu
veleiro "Zeppelin" de Posadas ate Cabo Frio. Nos dias
anteriores, o Badia havia conhecido também o Tincho, proprietário
de dragas de areia na região, o Gualter, dono de linda lancha
ancorada no camping, o Mario Zamboni e o Di Falco. O “Paraty Mirim”
angariava curiosidade e admiração por onde passava. Talvez um pouco
mais do que o normal entre as gentes do meio náutico, sempre
simpáticas e acolhedoras : um barquinho de madeira, de construção
artesanal própria, com um motorzinho de centro a fazer uma longa
jornada fluvial.
15.04.2004
- Quinta - POSADAS - Frustração : minha câmera Samsung Digimax
240, que teria um papel muito importante na viagem, pifou. Não
ligava mais e as baterias apenas ficavam esquentando muito. Passamos
o dia buscando alguém que desse uma olhada, com a consciência de
que estas tecnologias modernas ainda são conhecidas e dominadas por
poucos. A solução foi comprar uma câmera barata, sem comparação
com uma digital. Com o longo horário de siesta, quando tudo fica
fechado mais ou menos das 12 às 16 horas, e algumas compras e coisas
mais a fazer, passamos o dia em Posadas e nem fui visitar as ruínas
jesuíticas da região.
No final da tarde o "Paraty-Mirim"
ficava atracado e íamos comer os churrascos argentinos e dormir em
hotéis - aí o Badia deixava o excesso de cabos assim, para "impor
respeito".
|
16.04.2004
- Sexta – POSADAS-GARAPE - Saímos cedo para a continuação deste
terceiro trecho da viagem. Navegação tranqüila no inicio do lago
da represa de Yacireta (binacional Argentina-Paraguai), mas as cartas
não nos serviam no lago por terem 30 anos de idade, quando nem se
pensava em construir a represa e alagar o Paraná naquela parte. À
tarde fez bastante calor, quando nos dirigíamos para um Puerto
Garape, escolhido aleatoriamente a partir da distância que
estimávamos navegar em um dia. Garape veio a revelar-se uma escala
completamente inútil na navegação, pois está hoje no fundo de uma
grande enseada, ou curva na costa do lago de Yacireta. Além deste
atraso de quase um dia em comparação com se tivéssemos nos
dirigido direto à eclusa, em Puerto Garape vivemos o maior incidente
na navegada até hoje : após dificuldades em sua localização pelas
alterações nas cartas náuticas, chegamos pelas 17 horas em uma
prainha de uns 200 metros, rasa e cristalina, sem ninguém. Amarramos
o barco de proa na praia e ancorado na popa e subimos para o posto da
Prefectura Naval. Anoiteceu e, enquanto tomávamos banho, começou a
ventar e descemos para praia preocupados com o barco. Começavam
emoções fortes na viagem : na mais completa escuridão, o "Paraty
Mirim" balançava entre altas ondas e os galhos de árvores na
beira da praia. Entramos na água e passamos mais de 40 minutos
tentando puxa-lo mais para o fundo e amarra-lo a troncos, tudo em
vão. O carro da Prefectura iluminou-nos por um tempo mas retirou-se
logo com sua bateria fraca. Exaustos naquela luta sem sucesso na mais
completa escuridão e assistindo as ondas altas batendo-lhe na popa,
decidimos deixa-lo alagar-se por falta de melhor opção, ao mesmo
tempo evitando que viesse a ficar batendo com o casco no fundo raso e
arenoso. Decisão difícil mas necessária, salvar o barco e molhar
tudo o que se tinha a bordo, motor, roupas, documentos, câmeras,
tudo. Enquanto lutávamos contra as ondas de mais de um metro
apareceu uma lanterna na mão de alguém na praia : era o garoto
Lucas, que ajudou-nos no que pode e lembrou-nos, ao fim, de
amarrarmos tudo para que não sumissem à deriva no rio. Esta
providência, que no cansaço poderia ter nos escapado, garantiu um
dia seguinte sem maiores perdas. Extenuados, dormimos num quartinho
com mosquitos do posto da Prefectura Naval, sem que nenhum de seus
quatro ou cinco soldados ao menos demonstrassem interesse pelo
incidente que nos havia ocorrido, além de não terem auxiliado em
nada. Parece que a TV a cabo e o chimarrão estavam melhores do que
alguma solidariedade, dever da própria razão de ser de sua
instituição, ou ancestral cultura náutica de apoio e socorro.
O grande garoto Luca |
17.04.2004 - Sábado – GARAPE - Cedo de manhã, muito a fazer. O barco totalmente alagado na prainha agora tranqüila. Faze-lo flutuar novamente foi a tarefa mais fácil : dois baldes e alguns minutos. A seguir foram 6 horas de trabalho extenuante e triste, o Badia principalmente "secando" o motor, tirando a água do tanque de combustível e do carter de óleo lubrificante. Depois de transportarmos tudo o que havia a bordo para a praia, fiquei o dia inteiro tentando secar tudo num dia nublado com sol apenas eventual. A tarefa incluiu ficar constatando o nível dos estragos, das roupas que só precisavam secar aos documentos bastante danificados, câmeras molhadas, etc. E espalhar pelo campo a centena de cartas náuticas. À noite ainda tivemos que armar as 3 barracas para secarem.
18.04.2004
– Domingo – GARAPE-ITUZAINGO - Zarpamos cedo com destino à
eclusa de Yacireta. Tudo ainda úmido, levaria ainda uns três dias
até secar. Uns sete dias para secarem livros e cadernos ! Após 30
minutos de navegação verificamos o óleo lubrificante e estava
cinzento, sinal de água ainda presente. Trocamos por óleo novo
ainda duas vezes para isenta-lo de água. E como o estoque havia
acabado, retornamos a um empurrador de chatas parado nas imediações.
Deram-nos um balde de óleo, e soubemos que o carter de cada um dos
quatro motores do empurrador leva mais de mil litros de óleo !
Continuamos a viagem, o Badia acompanhando o motor e eu dando uma de
“Maria” com o barco parecendo um grande varal. No final da tarde,
já avistando a longa represa, assistimos a um belíssimo show de
natureza e nuvens, com direito a arco íris. Tínhamos mapas
atualizados de Yacireta, e demos sorte de chegar à eclusa junto com
um empurrador paraguaio e passar imediatamente, pois, ao contrário
das eclusas na parte brasileira, não costumam fazer a eclusagem
apenas para um pequeno barco. Foi minha primeira eclusagem, a décima
do Badia. Assistimos à simples mas emocionante operação, onde se
amarra o barco a uma bóia verticalmente móvel. Descendo o rio,
entra-se na eclusa com a porta à frente fechada. Os operadores
fecham a portão de trás e soltam a água represada pelo portão da
frente, para o nível baixo do rio. O barco desce deslizando na bóia.
Quando o nível da água alcança o nível baixo do rio, o portão da
frente é aberto e saímos. A comporta de trás ficou lá segurando
muitos metros de água do rio Paraná. Consta que Leonardo da Vinci
inventou o sistema. Dez quilômetros depois, atracamos na cidade de
Ituzaingo, a noite caindo. Fomos para um hotel com muitos mosquitos,
o que me fez passar o colchão para a varanda aberta e dormir ali.
19.04.2004 – Segunda – ITUZAINGO - Passamos o dia na internet e consertando uma conexão do rádio. Encontramos o Tincho, que o Badia já conhecia de Posadas. Deu-nos algumas dicas sobre a navegação nos trechos a seguir e mostrou-nos um velho navio enferrujado no porto : era um dos que puxavam os barcos e navios por quilômetros na forte correnteza naquela parte do Paraná, antes da construção da represa de Yacireta. Possuía possantes motores elétricos para mover os longos cabos de aço. Visitamos também sua draga de areia. Em Ituzaingo soubemos que a Revista Época havia publicado reportagem sobre a navegação antártica do Amyr Klink, onde o mesmo falava palavras desabonadoras em relação ao Júnior Rameck, de Parati, mecânico do barco milionário na expedição. Conferimos na internet.
20.04.2004
– Terça – ITUZAINGO-ITA IBATÉ - Antes de zarpar, voltamos à
internet e o Badia enviou à revista uma mensagem de desagravo ao
Júnior, que veio a ser publicada na edição seguinte. O Júnior é
nosso amigo de Parati há muitos anos e acompanhou o Badia em viagens
de veleiro pela costa do Brasil, pessoa honesta e competente como
mecânico e proprietário de uma marina construída com seus próprios
esforços. Chegando ao barco soubemos que um canal local de televisão
havia nos esperado por mais de uma hora, para uma reportagem sobre
nossa viagem. E encontramos o Luca, que nos havia auxiliado na
tempestade de Garape, com sua lanterna. O dia de navegação foi
outonal e lindo. De novo tínhamos a nosso favor a correnteza de
cerca de 5 km/h do rio, cristalino que nos auxiliava a fugir dos
muitos bancos de areia. Muitas ilhas e praias no trecho: a mãe
natureza oferecendo-nos os grandes motivos para a realização da
viagem ! Chegamos à noitinha em Ita Ibaté. Difícil encontrar o
local de atracagem na costa pouco iluminada da cidade. E ao
encontra-lo ainda tivemos que lidar com um soldadinho da Prefectura
Naval nervosíssimo porque tinha ordens de não deixar nenhum barco
atracar no deck da Prefectura ! Sem a mínima noção de marinha para
diferenciar uma embarcação chegando de uma longa jornada. A
situação foi controlada com a atracação em pequeno deck ao lado e
com as desculpas de um sargento pela falta de treinamento e
experiência do soldadinho. O povoado era muito sem graça e pequeno
e levaram-nos para o único hotel, o Piedras Altas : um hotel de
pesqueiros cheio de gaúchos que apareciam para a pesca dos grandes
peixes do rio Paraná. Estávamos cansados e tivemos a sensação que
era uma canseira atrasada das dificuldades passadas com as tarefas
após o alagamento do barco nos dias anteriores.
21.04.2004
– Quarta – ITA IBATÉ-PUERTO ABRÁ – Com poucos cigarros e o
uísque para esquentar os corpos, o mapa indicava uma cidadezinha no
Paraguai chamada Cerrito. Resolvemos fazer as compras lá, no que
seria nossa única atracagem no Paraguai. Não conseguimos: brincamos
que a cidade devia ser Shan Gri Lá, pois desistimos depois de
lutarmos com bancos de areia por quase uma hora num rio todo
cristalino, avistando algumas antenas atrás de algumas ilhas e tendo
até que sair do barco por vezes, para ajuda-lo a safar-se dos bancos
rasos. Avistamos um povoado no lado argentino, desistimos de Shan Gri
Lá e fomos fazer as compras lá. Havíamos saído de Ita Ibaté com
informações de um atalho através do Riacho Abrá, que depois de
poucos quilômetros revelou-se uma ótima surpresa : a beleza da
navegação pelos Riachos e Arroios paralelos ao grande rio Paraná.
Águas mais tranqüilas e margens mais próximas, beleza maior da
nossa calma, quase reflexiva navegação. Aí notamos que tínhamos
deixado de cortar caminho por outro arroio antes, o Arroio Tuiuty,
pois estávamos na região de célebres batalhas da Guerra do
Paraguai. Chegamos pelas quatro horas num belo e rústico recanto de
pesqueiros, com cabanas e áreas de churrasqueiras individuais (o que
sempre há muito na Argentina). Novamente muitos gaúchos a sair com
lanchas e guias de aluguel para pescar. No final da tarde assistimos
às chegadas com muitos peixes de quase um metro de comprimento. O
pesqueiro era de uma arrozeira Rzepecki, e ao chegar subimos à sede
e almoçamos conversando com a família que nos serviu. Depois
conversamos com o administrador do pesqueiro, o Ramon, e seu filho
Cristian. Dormimos nas barracas, para variar.
22.04.2004
– Quinta – PUERTO ABRÁ-ITATI – Saímos continuando pelo lindo
riacho, mas ao voltar para o Paraná notamos que o dia estava
bastante ventoso, com grandes ondas ao sair da proteção do riacho.
Insistimos no nosso rumo mas o ângulo das ondas nos fez optar por
rumarmos para a costa paraguaia para pegar a proteção do vento nas
margens ou aguardar que o vento acalmasse. Estive ao leme por quase
duas horas na travessia, com o “Paraty Mirim” comportando-se
admiravelmente no “mar bravio”, mas com ondas tão altas que
demandavam-me extrema atenção para pegá-las de perfeita proa.
Qualquer desvio poderia ser perigoso. Ancoramos o barco numa calma e
linda praia numa ilha paraguaia. Fizemos um nescafé e fotografamos
nosso querido barco compondo com uma estética galhada na praia,
dando um tempo para que se aplacasse a fúria dos ventos no lado
argentino.
Cruzamos
de novo para a outra margem e seguimos a navegação. Ao final da
tarde já avistávamos ao longe a cúpula da basílica de Itati : era
uma cidade de romarias por uma Nossa Senhora de Itati, uma Aparecida
deles. Mas o dia era do vento e do admirável e poderoso tempo
climático. Ao final da tarde recomeçou com suas indesejáveis
ondas. Continuamos, pois já não era hora de esperar por nada.
Subitamente fomos envolvidos por uma cerração que nos deixou apenas
a visão de uns poucos metros do rio à volta do barco. Cegueira
geral ! Lembrei dos meus vôos por instrumento de avião em Long
Beach, décadas atrás. Só que não tínhamos nenhum instrumento
para nos auxiliar na cerração total ! Bueno, ainda bem que só
durou uns cinco minutos e retornou a visão da cúpula da catedral.
Terá sido alguma mensagem de N. S. de Itati ? Acho que não. Ou não.
A cidade, feia, tinha aquela igrejona rodeada de “camelódromos”
de imagens e cuias e bombas e roupas e games e muitas tendas de
churrasco e bebidas, todas as áreas alugadas pela Cúria local. Os
hotéis todos diziam ter “cocheria”, que queria dizer
estacionamento mas que tínhamos dificuldade para não ler
“cocheiras”. Escolhemos um que era uma área de quartos com
banheiros coletivos e cheio de carros estacionados a poucos
centímetros das portas dos quartos. Eu, acostumado a dormir pelas
duas ou três, caí no sono às oito e meia da noite ! O Badia
demorou mais, sofrendo com o barulho das cervejadas que rolavam entre
os carros velhos.
23.04.2004 – Sexta – ITATI-CAMPING – A cidade nos fazia querer deixa-la o quanto antes, mas o motor do barco não pegou de manhã. O problema parecia ser no bico injetor, decorrências do alagamento de Garape. Na Prefectura nos indicaram um mecânico de “gasolero”, como chamam os motores a Diesel, e encontramos o Sr. Juan Carlos Henhammer. Aposentado de arrozeira, entendia bastante de motores Diesel. A oficina, ao lado da casa, era desorganizada do tipo muy exótica : ferramentas e restos de motores e peças por todo lado, carros e tratores velhos convivendo com as plantas que os invadiam. Conversando com ele e alguns de seus amigos ficamos ali acompanhando a limpeza do bico injetor. Tudo pronto, insistiu em acompanhar-nos ao barco para conferir se funcionaria. Não funcionou, então era a bomba. Mais algumas horas conversando e assistindo à sua carinhosa paciência em lidar com peças entravadas (acho que eu teria dado uma porrada de martelo para libera-la, provavelmente quebrando-a e travando toda a viagem até obter uma bomba de reposição). Voltamos ao barco, que agora pegou de primeira, o motor com um barulho de quem gostou do amor com que foi tratado. O Sr. Juan Carlos Henhammer não nos cobrou nada por tantas horas para os consertos, o Badia me pediu para tirar uma fotografia dos dois, e no final do dia zarpamos daquela cidade estranha, encantados pela linda pessoa que lá tínhamos conhecido. Uns quinze quilômetros depois, acampamos em um lugar bonito e abrigado por uma ilha arenosa. Ficamos conversando e bebendo Fernet puro, parente do Underberg, até a meia noite, ao pé de um fogo.
24.04.2004 – Sábado - CAMPING-CORRIENTES – Zarpamos tarde, desvantagem das barracas, que não gostam de serem dobradas sujas ou molhadas. Até Corrientes, capital da província do mesmo nome, passaríamos por uma Paso de la Pátria, também referência à guerra do Paraguai. Cidade balneário, bonita e arborizada, comemos um churrasco, compramos óleo diesel e uma garrafa de VAT69, uma promoção ao longo do rio, sempre diminuindo de R$ 19,00 a R$ 15,00, e seguimos viagem. Começou a fazer frio e nos vestimos de agasalhos cariocas, camisetas embaixo de moletons. Quilômetros depois passamos sob um linhão de transmissão de energia atravessando o rio, de um país para o outro, e começamos a notar manchas na água sempre verde e cristalina do majestoso rio Paraná, a água se tornava marrom claro, denso, com partículas heterogêneas como num liquidificador. Achamos que era o grande rio Paraguai que, após nascer no Mato Grosso , cruzava o Paraguai, inclusive banhando Assunção, e desembocava no Paraná ali onde estávamos. Pois a partir daquele ponto a água do Paraná se tornava marrom claro até o Rio da Prata. Não mais podíamos saciar a sede estendendo um copo para fora do barco nem mais lavar roupas a bordo. Soubemos depois que a alteração tão forte na água do Paraná se originava em um pequeno Rio Vermelho, que desembocava no Paraná próximo ao Paraguai.
Agora
já avistávamos os edifícios e a ponte que liga Corrientes a
Resistência, uma capital da província do mesmo nome, a outra
capital da província do Chaco. Já em regiões mais povoadas,
passávamos a deixar o “Paraty Mirim” em clubes náuticos e iate
clubes, ao invés de junto às Prefecturas Navales. Assim chegamos,
um pouco tontos, à grande cidade de Corrientes, no Iate Club
Corrientes, num sábado e com uns vinte sócios do clube a nos
receber, cheios de simpatias, curiosidades e afinidades. Em terras de
muitos mais lanchas, veleiros e cultura náutica o pequeno, amarelo e
simpático “Paraty Mirim”, com as bandeiras da Argentina e do
Brasil hasteadas, ia granjeando curiosidade e simpatia de todos os
irmãos do país vizinho, a quem parece que o nosso país
imediatamente relembra calor, praias, gente alegre e simpática, umas
férias passadas e uma grande vontade de voltar sempre ao Brasil.
Saímos pela cidade a buscar um hotel para ficar, só encontrando
hotéis de luxo e seus porteiros que passam a vida no “sim senhor”
e parecem caprichar na antipatia a quem não parece se enquadrar nos
estereótipos dos seus “senhores”. Encontramos uma simpática
“Cocheria” de R$ 35,00 para ficar em Corrientes.
25.04.2004
– Domingo – CORRIENTES – Passamos o dia na cidade, a manhã no
clube. O Badia notou que o motor demorava a pegar, após funcionar
suave depois dos tratos do Senhor Juan Carlos Henhammer. Ligou para o
Júnior, em Parati, e recebeu a dica de conferir o ponto de ignição.
Pegou de primeira. No clube encontramos o Wolfgang, de Hamburgo, um
alto alemão falante de bom espanhol e sua mulher Gisella. No
“Corinna Fredericka” (nome dado pelo primeiro dono homenageando
as filhas, “dá azar trocar”), um grande e belo veleiro, aspecto
de barco das batalhas, não das frescuras, contou-nos da vida
trabalhando duro em empregos comuns e o dia – dez anos atrás - em
que resolveu parar e curtir a vida através da natureza. Grandes
navegações pela Europa e seu leste, sibérias e mares bálticos,
tendo cruzado mais de trezentas eclusas ! Já havia navegado alguns
rios do oeste do Brasil. Com uma cerveja no Iate Club de Corrientes,
saudamo-nos por viver a vida.
NOTA
- Na republicação desse diário, em novembro de 2012, nesta altura
do trecho, fui buscar alguma foto do barco "Corinna Fredericka"
e encontrei uma triste notícia de um ano após, abril de 2005, no
site Popa.com.br- o falecimento do Wolfgang.
26.04.2004
– Segunda - CORRIENTES-EMPEDRADO – Zarpamos em direção à
cidade de Empedrado, a 75 quilômetros, passando sob a ponte de
Corrientes, bonita, igual à de Posadas, e ao longo da “costanera”,
parque à beira rio que notamos em todas as cidades da beira do rio.
No mapa, no caminho, desta vez, havia um riacho Riachuelo, com uma
anotação de histórico e a data de 1865. Já que no Brasil
aprendemos e não lembramos um montão sobre a guerra do Paraguai e o
nome Riachuelo é forte, atentamos para não o perdermos. Assim
entramos no Riachuelo, devagar e achando que havíamos ouvido que
havia algum marco da batalha por ali. Nada. Só uma entradinha cheia
de capim, nem nos arrepiamos por nada. Seguimos o riacho até o
Paranazão. A lua crescia de dia e nos aproximamos de Empedrado.
Começamos a notar o porquê do nome da cidade : as barrancas eram
especialmente bonitas, majestosas, verdadeiras catedrais de histórias
geológicas passadas. Tiramos um montão de fotografias que depois se
revelaram sem graça, ai que saudades das fotos digitais ! A cidade
não tinha atrativos além da Alejandra, uma moça que tentou
escanear umas fotos para nós numa internet pública, sem conseguir,
mas só boa vontade.
27.04.2004
– Terça - EMPEDRADO-BELLA VISTA – Dia todo de navegação
tranqüila. O porto de Bella Vista era apenas um concretão alto e
atracamos na prainha ao lado. Fomos recebidos por três crianças de
tipo índio e pobre, que tentavam “ajudar-nos”. O Steban falava e
eu não entendia. A principio pensei que era o espanhol enrolado que
os descendentes de índios falavam e tínhamos dificuldades de
entender, mas logo saquei que ele falava guarani. Então brinquei que
se continuasse falando guarani comigo eu ia responder em português.
Ele começou a falar espanhol. As crianças guaranis são todas muito
bonitas, ao menos as guaranis charruas, da região. E tinham nomes
também bonitos : Steban, Olga e Sebastian. Por sugestão e carona do
pessoal da Prefectura, fomos para a casa de um Sr. Oscar Gutierrez,
que alugava quartos para pescadores. A cidade era pobre com algumas
casas majestosas do tempo das riquezas do país no início do século
passado, mas degradadas pelo tempo.
Bella Vista |
28.04.2004
– Quarta – BELLA VISTA-GOYA – O dia foi outonal de um azul
lindíssimo, mas um tanto frio durante todo o dia. Naquela região
havíamos começado a ver barcos de transportar gado entre as
pastagens, todos gradeados à volta. A cidade fica ao longo do riacho
do mesmo nome e nossa chegada foi abanando pra todo mundo na margem.
No porto, uma bonita praça da cidade, notamos que no dia seguinte
começaria uma “Fiesta Anual del Surubi”, um concurso de pesca do
peixe, que apesar de enorme é do tipo do bagre, com pele e muito
gorduroso. O arraial de praxe já estava montado na praça. Havíamos
planejado passar o dia seguinte em Goya, o que acabamos por fazer só
porque choveu o dia inteiro. A cidade era relativamente grande mas
sem beleza além do porto, com um número incrível de carros, motos
e bicicletas. Já estávamos desacostumados com o movimento e o ruído
de tantos veículos. Passamos a primeira noite num hotel ruim do
centro e no dia seguinte mudamos para um melhor perto do porto.
30.04.2004
– Sexta – GOYA-PERDIDOS ! – Com informações do guarda Ábaco
de arroios e riachos a percorrer, fora do leito principal do rio,
saímos cedo em direção à cidade de Esquina. Atalharíamos pelo
arroio Garapo, riacho Nanganuy e o riacho Caraguatay, chegando a um
braço do Paraná e entrando novamente em outro arroio, sem nome na
carta, que nos levaria ao riacho Naranjal, quase um braço do Paraná.
Talvez pela primeira vez lidarmos com uma carta contígua
lateralmente à anterior, não lhe demos muita atenção e talvez
tenhamos entrado errado em outro arroio que não o Garapo. Seguimos
pelos lindos arroios e suas margens próximas e encantadoras sem
conseguirmos, no entanto, referenciar suas sinuosidades com a carta.
Após um tempo navegando meio às cegas encontramos uns barcos
militares que faziam manobras na região. Informaram-nos que
estávamos no riacho Nanganuy, pouco antes da confluência com o
arroio Soto. Então estávamos navegando certo. Mas algo não estava
correto: navegamos por umas duas horas e o arroio começou a
estreitar-se com muitos aguapés nas margens, até que se fechou
totalmente em aguapés. Retornamos contra a correnteza analisando
outras opções por onde havíamos passado. Tentamos uma que logo
fechou-se também. Na opção seguinte imagino que também tenhamos
errado. Seguimos, já no final da tarde, por um arroio que parecia
sem fim, mas com boa correnteza a nosso favor. O sol se punha e nada
de ‘bom’ acontecia. Nos estertores da luz do dia chegamos a uma
lagoa e buscamos logo um lugar para acampar, antes que escurecesse
completamente. Dormimos em um lugar precário, úmido e irregular.
01.05.2004
– Sábado – Ainda PERDIDOS – Iniciamos uma exploração da
lagoa, que tinha correnteza e, em tese, devia levar-nos ao Paraná, o
desaguadouro natural da região. Mas logo notamos que eram muitas
lagoas interligadas, um labirinto. As correntezas tentadas só nos
levavam a aguapés fechando. Passamos o dia inteiro navegando naquele
labirinto, cada vez mais desanimados. Em pé na proa para ver mais
longe, apenas víamos aqui e ali algumas vacas, nem sobra de gente.
Ao final da tarde, encontramos uma lanchinha com um guia e dois
turistas pescadores, um italiano. Não era possível explicar-nos o
caminho no labirinto e já estava tarde. Combinamos segui-los ao seu
povoado e no dia seguinte o guia nos levaria ao caminho para o nosso
rio Paraná. O lugar tinha poucas casas, perto de uma fazenda de
plantação de tabaco. O Badia foi à cidade mais próxima, na Ruta
12, buscar combustível. Acampamos no quintal da casa da família do
guia, simpáticos mas muito humildes, todos analfabetos.
02.05.2004 – Domingo – Encontro com o Paraná – ESQUINA – Cedo, rebocamos a lanchinha do guia por mais de uma hora até a saída das lagoas. Deixou-nos num córrego que os aguapés deixavam apenas com um metro de largura, dizendo que nos levaria direto ao Paraná. Após duas horas e meia naquela sanga estreita e infindável, alcançamos o nosso Paranazão lindo. Perguntei os nomes dos lugares para alguma análise posterior, que nunca fizemos pois aparentemente nada daquilo constava de nossas cartas: Lago Icuy, a 15 km da Ruta 12, perto de um pueblo chamado San Isidro. O povoado onde dormimos tinha o bonito nome de “Estella Maris”. Em Esquina se chega por um canal de “acesso” e a gente se defronta com um lindo parque fluvial margeando a cidade, cheio de gentes curtindo o final de tarde com a linda vista das ilhas e do Paraná e do por do sol. Um “chegamos” no posto da Prefectura Naval e fomos para uma casa que alugava quartos, linda e bem à frente do espetáculo do entardecer, ao lado do porto. Vinte e cinco reais por um apartamento luxuoso na linda casa de um casal, ele ex-agrimensor, ela bióloga, que haviam resolvido, anos atrás, dedicarem-se a viver e alugar os quartos da bem localizada casa que tinham no lugar. Comentamos com o casal acerca da diferença de cidades tão próximas e tão díspares : Bella Vista e Esquina tão bonitas e prósperas, Empedrado decadente e pobre no meio. A explicação foi de que as cidades melhores tinham grandes culturas em sistema de hidroponia. De fato passamos por muitas tendas plásticas de hidroponia, mas a resposta não nos convenceu muito. Como em quase todas as cidades um pouco maiores por que passávamos, em Esquina havia uma bonita igreja na praça principal.
03.05.2004
– Segunda – ESQUINA-LA PAZ – Apesar de ressabiados de nos
afastarmos do Paraná, deixamos Esquina seguindo instruções
alternativas. Seguimos o Rio Corrientes, que banha a cidade,
continuando pelo riacho Ingá até o Paraná principal. Logo depois
navegamos uns trinta quilômetros pelo riacho Ingacito, continuando
pelo riacho Espinillo, outros trinta quilômetros até voltarmos ao
Paraná, perto de La Paz e já na província de Entre Rios. Mas já
nas ilhas da confluência do riacho Espinillo e o arquipélago que
precede a cidade, novamente entramos em “atrito” com os mapas de
1973 : sob um frio intenso caiu a noite e navegamos cerca de duas
horas além do esperado e do explicável até chegar ao porto de La
Paz. Ao atracar reconhecemos o veleiro alemão “Corinna
Fredericka”, do Wolfgang. Encontramo-nos na manhã seguinte na
internet.
04.05.2004
– Terça – LA PAZ-HERNANDARIAS – Preparando-nos para zarpar,
perguntei ao Wolfgang que mapa usava para navegar. Respondeu-me que,
demandando um calado bem maior, preferia só navegar de “carona”
seguindo as chatas e navios paraguaios, pois nenhuma carta era de
confiança. Despedimo-nos até um próximo porto mas não mais os
encontramos. Talvez as caronas tenham demorado a surgir. Poucos
quilômetros rio abaixo, notamos que os dois toldos amarelos que
deixávamos encima da tampa do baú da proa haviam sumido. De fato,
na noite anterior o guarda da Prefectura havia nos indicado um lugar
para atracar que na manhã seguinte notamos tratar-se de um Clube
Náutico de La Paz, sem nenhum barco nem segurança. Havíamos dado
mole demais para algum barquinho que só precisou puxar os toldos
dobrados. E a página da Força Aérea Argentina (em
www.meteofa.mil.ar) previa chuva para aquele dia. Mas tivemos sorte :
de manhã avistamos a chuva lá na frente e de tarde lá atrás, mas
nos poupou naquele dia frio. Hernandarias é uma pequena cidade que
está sofrendo porque as barrancas da região estão caindo, e de
fato até assistimos alguns desbarrancamentos enquanto navegávamos.
Há uma bonita área municipal na beira do rio, mas está sem
movimento desde que a estrada ao local foi soterrada. Os habitantes
reclamam da fuga de turistas e movimento e estranhamos não fazerem
nada ou pressão
para que a municipalidade fizesse alguma coisa para restabelecer a
estrada até a parque. Os garotos do “Remar até o Mar”, em 1999,
haviam comentado sobre as calçadas de 8 metros da cidade. Medi com
passos largos e deu 13 metros ! Gramado com uma faixa de cimento como
calçada. Por ironia à situação por que passa a cidade, na margem
eles tem um belíssimo deck flutuante lindo e antigo, presente da
Inglaterra e todo branquinho reformado, com lugar para bares e bandas
tocarem.
05.05.2004
– Quarta – HERNANDARIAS-PARANÁ – A vinte quilômetros saindo
de Hernandarias passamos pela cidade de Brugos, onde uma grande placa
brinca por localizar-se no quilômetro 666 com a correlação
lingüística do nome da cidade com a palavra bruxos. À tardinha
atracamos no Club Nautico Paraná, onde nos esperava nosso amigo
Jorge Pereyra, o ‘jotapemarine’, empresário local de náutica. O
Clube Náutico de Paraná foi o melhor que vimos em toda a viagem.
Bonito e organizadíssimo, teve a fortuna de haver sido construído
aproveitando o canteiro de obras da construção dos tubos para o
túnel Paraná-Santa Fé, sob o rio, em 1967. Diques secos e
comportas onde eram feitas as peças do túnel adequaram-se
perfeitamente para um clube náutico. O Comodoro, Sr. Buscema,
gentilmente recebeu-nos no clube por alguns dias que pretendíamos
passar na cidade. Sueli, a esposa do Badia, veio de Paraty e esteve
conosco visitando a cidade e acompanhando a navegação no trecho
seguinte até Rosário. Ficamos em um hotel Latino e, ciceroneados
pelo Jorge Pereyra, conhecemos as lindas cidades de Paraná e Santa
Fé, do outro lado do rio.
11.05.2004 – Terça – PARANÁ-DIAMANTE – Cedo tiramos o “Paraty Mirim” da água na ‘pluma’ do clube para reparar um pequeno vazamento no duto do eixo da hélice. A eterna luta para ter um barco sequinho. E continuamos a navegação, agora contando com as úteis anotações do Jorge Pereyra nos mapas antigos. Jorge é um grande conhecedor de todo o rio Paraná e de muitos outros da região e até do Brasil, onde também conhece a costa marítima. Outro bom dia de navegação, mas continuando um pouco frio. Em Diamante o guarda da Prefectura indicou-nos o Camping Municipal, num arroio ao lado, para ancorarmos. Um lugar meio ermo mas saímos a buscar um hotel com tudo trancado no barco. À noite na cidade fomos surpreendidos pela visita de um oficial da Prefectura Naval enquanto jantávamos em um restaurante. Queria a confirmação de um dos 13 algarismos do número de registro do barco, que não estava batendo.
12.05.2004
– Quarta – DIAMANTE-ROSÁRIO – Dia de uma puxada de 115 km,
saímos cedo rumo a Rosário. Mas logo fomos chamados por um oficial
da Prefectura, no cais do porto : queria confirmar o tal número de
registro, e aproveitar para dar uma geral de documentos em nós e na
Sueli. A partir de Rosário, aproveitamos as paradas apenas em clubes
náuticos e não mais perto da Prefectura para avisá-los das saídas
e chegadas diárias através do rádio dos clubes ou por telefone no
número 106. Assim passou a ser mais tranqüilo, sem as chateações
de números, horas e identificações. Ao contata-los em pessoa para
as informações de saída, destino e chegada, para o acompanhamento
obrigatório naquele país, a veia policial se excitava e muitas
vezes quase nos davam geral. Para eles poderia tratar-se apenas de
quebrar o ócio em que se encontravam, mas nós estávamos a quase um
mês pernoitando quase em uma cidade por dia. Em Rosário,
conversando com pessoas do ambiente náutico, soubemos que também
faziam isso com os argentinos que andavam pelo rio Paraná. Tivemos
até sugestões de tirar a bandeira do Brasil do mastro e
esquecê-los. Mas nossa origem foi sempre uma marca importante de
nossa viagem. Rosário é a segunda maior cidade da Argentina, ainda
que a capital da província seja Santa Fé. A aproximação de lá
lembrava-nos do início do final de nossa longa jornada. Muitos
portos e terminais privados, muitos navios. Ainda que interessante,
não é agradável a visão dos grandes cais, navios e terminais
abandonados pelo tempo ou pelas crises, o rio sujo e poluído.
Atracamos no Clube Náutico do Ministério de Obras Públicas, onde
fomos costumeiramente bem recebidos pelo Capitão de Náutica,
Osvaldo Colmegna. Achamos um “Hotel Bahia” no misto de bom e
barato. Na recepção o Badia pergunta a razão do nome do hotel
(ainda que baía em espanhol seja com h). Rimos muito com a resposta
: “Meu marido foi mandar fazer uma placa de nome e esta já estava
pronta e ficou mais barata”.
13.05.2004 – Quinta – ROSÁRIO – Passeamos pela cidade, admiramo-nos do preço barato dos cinemas (cerca de R$ 4 a 6), e a Sueli embarcou de volta para Paraty.
14.05.2004
– Sexta – ROSÁRIO – Não conseguimos zarpar, pois o dia estava
frio, nublado e ventoso. E enquanto preparávamos o barco o vento
girou para sul, bem ao longo do rio, sem chance de abrigo nas
margens. Mais cinema e aguardar o dia seguinte.
15.05.2004
– Sábado - ROSÁRIO – VILLA CONSTITUICIÓN – Agora com uns 10°
C de frio mas ensolarado e os ventos calmos, situação que
permaneceu durante todo o trecho, fizemos apenas os 48 km naquele dia
e atracamos no Clube Náutico local. Mais para os centros maiores,
existem muitos monumentos aos mortos na Guerra das Malvinas, uma
triste guerra que mexeu com o âmago dos nossos vizinhos em um tipo
de sentimento nacional de que não temos idéia no Brasil : desde
crianças aprender-se que está faltando um pedaço do país. Os
hotéis iam aumentando de preço. Já sentíamos saudades do
Paranazão e sua natureza só nossa, e dos calmos ‘pueblos’ e
suas gentes simpáticas.
16.05.2004
– Domingo – VILLA CONSTITUCIÓN-SAN PEDRO – Saímos com tempo
nublado e frio para os 107 km até San Pedro. Apesar de passarmos
pelas cidades de San Nicolas, Ramallo e Obligado, entre elas o rio
ainda se mostrava selvagem, natural. Chegamos cortando caminho pelo
longo riacho San Pedro, num frio de tarde azul mas bastante frio, o
mesmo frio que viria a nos acompanhar até o final. O riacho era
calmo e cortava um relevo bastante plano, quase um pampa. Passávamos
com as margens gramadas na altura dos nossos olhos, deliciando-nos
com o ângulo que muitos bonitos cavalos nos revelava, o céu azul ao
fundo.
17.05.2004
– Segunda – SAN PEDRO-ZARATE (via Rio Baradero) – Logo na saída
de San Pedro entramos no rio Baradero, junto com um grande veleiro de
casco negro, sem bandeiras, com um casal, provavelmente europeu.
Neste momento eu e o Badia fizemos um brinde de homenagem e despedida
ao nosso querido Rio Paraná, a doce estrada de nossa vida nos
últimos trinta dias. Até Buenos Aires não mais navegaríamos em
seu leito, mas em outros rios e canais e no rio Paraná de las
Palmas. Muitas horas pelo Rio Baradero, passando por muitas casinhas
de pesca e lazer isoladas nas margens. Em seu final, algumas mansões.
Entramos, então, no Rio Paraná de las Palmas, bem mais estreito que
o Paraná, bem sinuoso e sinalizado. Redobramos a atenção ao grande
movimento de navios com tantas curvas, já que não tínhamos
velocidade para qualquer fuga eventual. Ao longe avistamos as cúpulas
da Usina Nuclear de Atucha, por onde passamos dali a poucos
quilômetros. O barco pernoitou no Clube Náutico de Zarate. O Badia
ligou para seu amigo Edmar, capixaba há nove anos vivendo em Buenos
Aires e trabalhando em náutica, que combinou encontrar-nos na
próxima parada no dia seguinte, acompanhando-nos pelo canal de Árias
e o rio Lujan até a grande Buenos Aires. Já casado com a argentina
Suzana e com filhos, o Edmar falou-nos que estava retornando ao
Brasil, cansado do frio daquelas paragens.
18.05.2005
– Terça – ZARATE-SAN FERNANDO (via Canal de Árias e Rio Lujan)
– Continuamos navegando pelo rio Paraná de las Palmas até a
cidade de Escobar, que estranhamente não constava do mapa. Lá
chegando já avistamos de longe o Edmar nos acenando do cais do
porto. Festejou muito o encontro com o Badia e continuamos a
navegada, virando logo à direita para entrar no Canal de Árias, de
vinte quilômetros de extensão e ligando o Paraná de las Palmas ao
Rio Lujan. Era uma região bastante esperada por nós, e logo
começamos a percorrer o canal, quase todo povoado nas margens por
sítios e quintas de moradia e veraneio dos portenhos. Todo o tipo de
embarcações transitando : barcos dos correios, barco escolar,
barcos supermercado, barcos hospital, barcos de transporte público.
E não estávamos na época de férias ou verão. É o Delta do Rio
Tigre e compõe-se de dezenas de canais, riachos e arroios,
balneários fluviais bastante povoados. Nada parecido existe no
Brasil. Já havíamos terminado o uso da centena de cartas do Paraná
de 1973. Agora o mapa era uma simples folha da carta H-130. A tarde
esfriava e entramos no rio Lujan, que em mais vinte quilômetros já
nos levaria à cidade de Tigre, primeira da Grande Buenos Aires. Uma
dezena mais, até o Rio de la Plata.
As
casas de lazer nas margens começavam a dar lugar a portos, terminais
privados e muitos, muitos clubes náuticos e “guarderias” de
barcos. Nos espantávamos ao ouvir do Edmar que até Buenos Aires
seriam quase só clubes náuticos e iate clubes, um ao lado do outro
por uns vinte quilômetros ! Novamente, nada parecido existe no
Brasil ! Os clubes tinham centenas ou milhares de lanchas e veleiros.
As “guarderias” pareciam hangares de aviões, enormes e fundos,
com cerca de dez ‘andares’ de ‘gavetas’ de lanchas, centenas
de motores de popa expostos para fora como abelhas na colméia. Já
sofrendo a influência do oceano Atlântico, andávamos devagar
porque a maré estava enchendo rio adentro. Eram tantos os clubes que
entramos em San Fernando, seguinte a Tigre, num diferente do que o
Jorge Pereyra nos havia recomendado. Mas não fez diferença, fomos
bem recebidos e o “Paraty Mirim” dormiu na vaga de cortesia. Em
San Fernando só havia um hotel, caríssimo, e fomos de táxi para a
cidade seguinte, San Isidro.
19.05.2004
– FINAL – Pela manhã nos encontramos novamente com o Edmar e
fomos de trem
até
Buenos Aires para pesquisarmos sobre caminhões brasileiros que
pudessem estar voltando vazios ao Brasil, para retornar o “Paraty
Mirim”. Com pouco tempo para a busca e sem resultados, o Badia
decidiu procurar um clube náutico seguro e de bom preço para deixar
o barco no seco, deixando para vir buscá-lo no verão com a carreta,
e aproveitando para fazer um turismo mais descansado pelo Delta do
Tigre. Voltamos a San Fernando e fizemos o último trecho da viagem
no “Paraty Mirim” : uns dez quilômetros até o Iate Clube San
Isidro. Seu Presidente, o Sr. José Luiz, acolheu-nos gentilmente
concedendo-nos desconto nas mensalidades e a retirada da água
gratuita. À tarde já havíamos encontrado o Martin, argentino
conhecido de Paraty e angra dos Reis, onde há anos reside, fazendo
‘charters’ com seu veleiro. Pernoitamos na casa de seu pai, Sr.
Carlos, simpaticíssimo e agradável nos seus 86 anos de idade, a
quem Martin prestava uma visita semestral. No dia seguinte regressei
de ônibus ao Brasil. O Badia ficou mais um dia. Terminavam os cerca
de 3.000 quilômetros da Navegada Barra Bonita-SP Buenos Aires no
gracioso e competente “Paraty Mirim”, bom fruto das mãos
habilidosas do Badia, com o velho e heróico motorzinho de centro a
diesel que, com seu consumo aproximado de R$ 10,00 por dia, tornou
financeiramente viável esta longa e admirável jornada pelas doces
águas do Mercosul.
Nenhum comentário:
Postar um comentário